Classificação Etária: Livre
Mais Informações: (11) 4992-7730
Acessibilidade:
Tradução para LIBRAS: Não
Áudio Descrição: Não
Casa do Olhar Luiz Sacilotto
ver mapaocultar mapaDE TERÇA A SEXTA DAS 10H AS 17H | SÁBADOS DAS 10H AS 15H | ABERTURA DIA 31 DE AGOSTO AS 11H
Preço: GRATUITO
Endereço: Rua Campos Sales, 414 , Centro, 09015-200, Santo André, SP
Descrição
Súbita InsistênciaI. um pouco antes
Leaves of Grasses (Folhas de Relva), livro de Walt Whitman, teve nove edições. Da primeira edição (1855), em cuja capa mal se lia o nome do autor, à nona (1892), uma “edição de leito de morte”, ele reescreveu e suprimiu versos inteiros, acrescentou títulos, eliminou o ensaio introdutório. E nesses movimentos de ir e voltar, de revisões, remanejamentos, expansões, adaptações, contensões, o livro como “imagem-matriz” foi de 12 a mais de 400 poemas até sua última versão. “Me contradigo? Tudo bem, então, / me contradigo; / Sou vasto, contenho multidões”, escreve o poeta no fim do poema Canção de mim mesmo, o que parece comprovar sua intensa labuta na palavra.
Para Clarice Lispector, as palavras estavam em contínuo movimento de desgaste e, por isso, ela persistia em seu ofício de escrever. Fracasso e falha foram seus companheiros, sentia-os rondar sua urgência por escrever. Também buscou respostas, buscou sossego, buscou amenizar seus conflitos de escritora. As perguntas nunca cessaram, a satisfação de finalizar uma obra nunca lhe surgiu. Mas Clarice não desistiu, seguiu escrevendo, lutando em sua peregrinação literária, quase como uma penitência de vida.
A raiva e a compulsão pela repetição sustentaram o processo de criação de Louise Bourgeois. Seu fazer, segundo a própria artista, era uma espécie de instrumental que a permitia tornar-se mais ativa, mais dona daquilo que havia vivenciado passivamente, na infância e na juventude.
Reviver, repetir, reencenar traumas e memórias, em seus trabalhos, lhe garantiam uma espécie de libertação do corpo e sua sanidade. Louise registrou em seu diário (agosto/1984): “ser um artista é uma garantia para seus companheiros seres humanos de que o desgaste da vida não deixará você se tornar um assassino”.
Segundo Gilberto Gil, Refazenda (música lançada em 1975) “é rememoração do interior, do convívio com a natureza; reiteração do diálogo com ela e do aprendizado do seu ritmo”. Os versos, feitos antes da música, obedeciam apenas a uma vontade de transgredir, a uma aleatoriedade de palavras que fossem rimando sem nexo. O ritmo e a descontração das frases, que iam surgindo e se justapondo, iam criando uma atmosfera nonsense. Assim, Refazenda parece nos levar a um tempo de retorno à natureza, de insistência no fluxo de um renascer sempre diferente.
II. Quando o fazer se enche de mar
O campo de procedimentos da gravura – grosso modo, produção de uma matriz em pedra, madeira, metal ou em outra superfície que suporte talhos, riscos, corrosões; e a seleção e impressão de uma imagem criada a partir dessas incisões – tornou-se, na trajetória artística de Kika Levy, singularidades práticas e motivações para experimentar e criar processos que se traduzem em expansões da produção gráfica e da função poética da imagem gravada e da própria linguagem. A artista, de certa maneira, abandona a clausura sistematizada que assola e obriga a imagem a ser perfeita e reproduzida com padrão de cor, intensidade e verossimilhança entre os componentes da série. Ela lança a gravura numa sintaxe mais próxima do desenho e, assim, atribui um aspecto de fluxo, de insistência no fazer, de duração alongada de uma convivência exploratória e infindável com a imagem que, por natureza, é mais inquieta, inacabada, sempre disposta a se metamorfosear.
A mostra Súbita Insistência, de Kika Levy, é um pequeno apanhado deste contexto de persistência na imagem que surge durante seus incontáveis gestos de desenho. Os trabalhos apresentados guardam dinamicamente aspectos de uma constante experimentação e dos improvisos – corte no papel, composições que driblam planejamentos, as surpresas que aparecem nos processos de impressão – que resistem em seu ateliê. Kika acolhe o erro, o acaso, a convivência com os processos em sua potência de desvio de caminho e se vale disso para reelaborar e insistir em imagens. Olha, reimprime, desiste, volta atrás. Dobra, reaproveita, deixa decantar. E, deste amontoado de sutis acontecimentos, a artista constitui um grande corpo de sobreposições de imagens, resíduos de impressões, recortes, sobras que compartilham os mesmos espaços com esboços e imagens impressas.
O título da mostra também é decorrente dessas constatações no processo de Kika. É mesmo óbvio que a junção do adjetivo súbita (cuja condição de tempo aponta para algo que surge ou chega de repente, sem ser previsto; subitâneo, repentino, inesperado) quando aliado ao substantivo insistência (ato ou efeito de insistir, persistir, perseverar, não desistir, isto é, verbos que sugerem longa duração, continuação) guarde uma contradição. Pois bem, contradição assumida, e é mesmo a partir deste ponto que a exposição pretende provocar diálogos. O que podemos observar no processo da artista é sua incansável labuta no desenho e preparo da imagem. De repente, algo na imagem em processo lhe chama a atenção e lhe desperta o desejo de experimentar, de insistir, de se debruçar até que outro aspecto tome o lugar de protagonista no gesto em questão, na imagem em questão, no desenho em questão. Tal ritmo de produção aproxima-se do que Paul Valéry tentou definir no texto “Acerca do cemitério marinho” (1933), reflexão profunda sobre suas ferramentas de composição do metapoema “Le cimetière marin” (O cemitério marinho), de 1920:
Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.
Valéry afirma que seria bastante comum aliar uma obra a uma coisa finita, assim como a vida. Mas para ele, particularmente, assim como a vida, uma obra seria, ao contrário, uma força de transformações em ação. Nesse sentido, a entrega ou o fim do prazo de produção de uma obra seria confundido com algo que ainda não chegou à perfeição e foi abandonado. E aos olhos do público, a obra seria uma espécie de “acidente”, apartada de toda reflexão processual que a ergueu. Quando reencontrou seus poemas aos 50 anos de idade, Valéry se viu diante de uma vívida necessidade de mantê-los “entre o ser o e não ser, suspenso diante do desejo (...); cultivar a dúvida, os escrúpulos e os arrependimentos – a tal ponto que uma obra sempre retomada e refeita adquira aos poucos a importância secreta de um trabalho de reforma de si mesmo”.
São essa procura e retomada infindável que atravessam os métodos nada rígidos de Kika Levy. Para ela, o trabalho se dá no momento em que o pensamento fracassa ou ocorrem brechas para se questionar sobre o próprio fazer, quando justamente surge um aspecto em que se deve persistir ou mais precisamente lhe imprimir uma nova direção. Assim, o que vemos como trabalho, longe de se configurar como algo que atingiu o ponto de perfeição ou que se conecta a uma sensação de contentamento pela “coisa pronta” e dever cumprido, é um feixe de forças e de tempos, em que gestos se aglomeraram e cessaram provisoriamente de atuar, mas ainda se ouvem seus ecos, ferramentas perfurando a linguagem, as linhas, as imagens, os papéis. E nessa perfuração latejante, os pensamentos e percepções que se extraem da linguagem e do material, como coisa sendo vista, atingem muitos contornos, alcançando corpo, olhos, provocando diálogos.
O que nos faz pensar: os trabalhos de Kika são instantes recortados de um caminho sem linha de chegada, cujo percurso é o reflexo vivo de uma consciência subjetiva sobre a linguagem, sobre o contexto em que ela se insere, sobre as dúvidas e tortuosas decisões presentes no fazer. Seus trabalhos contextualizam um lugar de questionamento sobre o tempo, como se deu o tempo de fatura da obra e das experimentações que a constituem. A coisa criada, produzida, lapidada e que é também coisa em vias de voltar a ser processo faz-se, então, trampolim para águas caudalosas e turbulentas de um oceano de indagações e de desdobramentos.
III. “E em cada minuto a criatura (...) / inteiramente se abre em mim como um tempo”
Para a mostra de Kika Levy, a junção ambígua e o embate entre dois tempos – o imediato que se apresenta e surpreende e a insistência que se prolonga no processo – é tema-chave de seus impulsos de produção e experimentação. Quatro projetos habitam a Casa do Olhar, em Santo André, provenientes dessas movimentações: Geométricos, Icosaedros, Tempo Progressivo, Sem título e alguns mobiliários (mesas e armários) com uma seleção de croquis, resíduos processuais, anotações visuais, testes de impressão, objetos e ferramentas de desenho. Um todo de imagem rítmica e densamente povoado borra as fronteiras entre obra e processo, numa síntese entre a precisão da forma e do desenho e os rastros dos improvisos e experimentações da artista.
Geométricos (2013, gravura em metal e aquarela) é uma seleção de muitas impressões de um hexágono que se torna cubo em alguns momentos de composição cromática e ocupação de espaço. Uma malha quadriculada atua como um mapa que transforma o espaço interno da figura: entre azuis, tons de pele e a própria coloração da fibra do papel. A artista desenha planos, outras figuras geométricas, traçados volumétricos que vão se conectando.
O conjunto de Icosaedros (2010, gravura em metal) é um trabalho site specific montado na sacada de uma das salas da Casa do Olhar. Ali, um vitral se pronuncia com muitas formas sinuosas e contrastes cromáticos em oposição aos poliedros de 20 faces de Kika. Os volumes, com gravuras impressas e dobradas, flutuam projetando tempos de observação de suas faces. São exercícios de síntese cromática e formal.
A série de gravuras de Tempo progressivo (2007, gravura em metal) são pequenos desenhos montados em peças de madeira que descansam no chão. Dessa maneira, parecem guardar a sutileza das imagens: pequenas flores em movimento, despetalando-se, que são observadas a partir de uma geometria orgânica aos olhos da artista.
Na instalação Sem título (2019, gravura em metal) Kika imprimiu aproximadamente 10 metros de uma paisagem que acontece como uma abstração – entre mares, montanhas, lagos, relevos, ondas. Uma vista panorâmica leva o olho a um passeio topográfico.
Galciani Neves
(agosto/2019)